Quando acordo numa grande cidade como São Paulo não tenho a impressão de que um novo dia começa. O peso do dia anterior, do ano anterior – e, naqueles dias de calor intenso, dos séculos anteriores - acorda comigo. Uma noite bem dormida não significa recomeço: está mais para um lapso temporal que falha em sua tentativa de separar erros acumulados, regras e incertezas. Sombras e corpos mutilados perdem a cor enquanto durmo, apenas para reaparecem mais eloquentes na manhã seguinte.
Antes eu não tinha uma imagem decente para essa sensação. Imaginava uma bola de chumbo e poluição presa no meu pé de apoio, mas não era bem isso. Agora tenho as fotografias de Mario Lalau.
Dentre as imagens, há aquelas que de tão prosaicas são uma invenção. Trata-se de uma nova espécie de estranhamento. Como se fossem as primeiras fotos de um animal geneticamente modificado e biologicamente inviável. Uma ave de rapina com corpo de girafa.
Ou talvez esse bicho seja a própria metrópole. E quantos bichos podem haver escondidos nas camadas da cidade? Uma caixa de areia cinza – de função desconhecida - parece tentar segurar um deles, pedaço de plástico e borracha que se ergue acima da calçada ainda mais cinza. Só então lembramos que o chão onde pisamos - e morremos – não é real, e sim uma invenção moderna. Foi posto por alguém, que ordenou: “aqui, nessa faixa de concreto, as pessoas podem caminhar”. Multidões, como rios, foram canalizados. A água só encontra a margem quando transborda.
E o que vejo nas imagens de Mario Germano é o oposto do esquecimento. Elas parecem, de fato, o lado avesso do descarte, lugar onde o que é periférico assume papel central. Não estou falando sobre lixo, embora o objeto descartável seja tratado com um personagem ativo nas imagens. Todavia, aqui ele não é apresentado como provisório, mas uma notícia permanente, alojada em deboche. Como no caso do cesto de arame parcialmente vestido e de tamanho exagerado para o conteúdo que abriga.
O fotógrafo aponta a câmera muitas vezes para aquilo que tropeçamos, mas nos negamos – ou não conseguimos – encontrar. Pessoas deitadas com cones na cabeça, mangueiras com formatos impossíveis e esqueletos de seres coisificados. O que fica claro é que as imagens, feitas em diferentes países, anunciam um evento em escala global. E mesmo que pareça contraditório, cabe lembrar que o trabalho mora mesmo é na micro história, aquela que ocorre em espaços pouco privilegiados e não merece atenção dos jornais.
Germano é um fotógrafo de rua contemporâneo. Não espera horas pela luz exata ou evento cósmico único, embora o “instante decisivo” apareça como farsa em determinadas fotografias. Na maioria das vezes, sua câmera está voltada para aquilo que não acontece. Eventos que não se completam, mesmo quando vistos em conjunto. E, dessa incompletude, nasce uma ideia perturbadora. Aparentemente nós, seres humanos dotados de polegar opositor e telencéfalo altamente desenvolvido, não temos ideia nem palpites de pra onde vamos ou como chegamos até aqui. Os percursos do fotógrafo não levam a lugar nenhum: na melhor das hipóteses, nos conduzem ao choque com grades e paredes. Seu mapa é uma compilação de becos sem saída.
Do lado de dentro, os restos e rastros de uma civilização que não funciona acordam comigo todos os dias. São sinalizações que desinformam, cachorros vazios e plantas pré-moldadas. Vivemos na Era daquilo que não se completa.